Baixadas as águas e enxugadas as lágrimas, a dor ainda é grande no meio daqueles que se viram apanhados pelas tragédias em conseqüência das chuvas da primeira semana de abril no Rio de Janeiro. Quem perdeu todo seu patrimônio e até vidas, o que é pior, inestimável, jamais esquecerá tamanho capricho da natureza. Famílias inteiras foram dizimadas e suas estórias de vida soterradas com elas sob escombros e muita lama.
Como disse, depois de enxugadas as lágrimas a dor da perda continua, mas quem sobreviveu já consegue fazer algum juízo sobre tudo que viu. Ironicamente, as desgraças também deixam estórias, não só de infortúnios, mas também de luta e de vontade de viver. Impossível não se deixar envolver e tentar fazer alguma coisa pelos que saíram “ilesos”.
No dia em que eu entregava uns colchões que havia doado a um casal vitima da enchente, eles, enquanto carregavam as coisas no caminhão iam me contando o que passaram, e que justamente um colchão havia salvo a vida de suas crianças.
Sem qualquer resquício material de suas vidas antes daquela noite, nem mesmo documentos, só restava aos desabrigados a solidariedade de quem não sofreu com as chuvas e tenha algo, mesmo pouco, para compartilhar.
A estória deles, um casal e três meninos, é no mínimo curiosa. Uma das crianças, o mais novo, é portador de deficiência física, tem dificuldade de locomoção e estava muito fraco, muito magro. Duas semanas antes da fatídica noite de chuva que alagou o Rio de Janeiro, o casal saiu para comprar um colchão inflável para o garoto. O médico havia recomendado há bastante tempo, e, sem dúvida, seria mais confortável para o menino que os ortopédicos comuns. Em parcelas a perder de vista, compraram o tal colchão, mesmo sabendo que iria pesar no orçamento. Mal sabiam que ele seria a “tábua de salvação”.
Na noite do “dilúvio” o pai das crianças acordou já com água sobre a cama. Com a água naquele nível, não seria prudente ligar a luz; acendeu um fósforo e percebeu que o menor flutuava pelo quarto sobre o colchão novo. Como não se molhara, ainda dormia. As águas continuavam subindo rapidamente. Acordou a mulher e, com dificuldade, correu até o outro quarto, onde dormiam num beliche os outros dois. O mais velho, dormindo encima, ainda não se dava conta dos fatos. O de baixo já chorava apavorado com as água e a escuridão.
A situação era desesperadora; alagados dentro da própria casa no meio da noite. O casal não pensou duas vezes, colocou os outros dois meninos sobre o colchão, que agora fazia a vez de bote salva vidas, e, com dificuldade, rebocou os três até praça do bairro onde as equipes da Defesa Civil já começavam a resgatar os moradores. Depois de deixar as crianças em lugar seguro com vizinhos, o casal ainda voltou até a casa para tentar salvar alguma coisa. Já não dava pra fazer mais nada. As águas passavam de dois metros dentro de casa. Pegaram apenas algumas bolsas que ficavam sobre o armário, ajudaram ainda a recolher algumas crianças vizinhas e remaram de volta para o ponto de apoio da Defesa Civil. Desolado, o pai de família vasculhava as bolsas para ver o que havia salvo da enchente. Alguns papéis, contas, muitas contas e o carnê do bendito colchão. Empunhando o comprovante daquela compra abençoada desabafou: - Este eu vou pagar com prazer!
Perderam tudo, menos a vontade de viver e o colchão.