domingo, janeiro 17

A poesia e a música

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Quem frequenta o Voz regularmente sabe que gosto de poesia e que de vez em quando comento algum autor ou até mesmo arrisco divulgar algum dos meus poemas. Viajava eu por esse meio intangível da poesia, em busca de poetas clássicos, preferencialmente portugueses, espanhóis ou italianos, quando a beleza e a profundidade dos versos de Florbela Espanca me detiveram, ou seja, puseram um fim à minha busca. Florbela não é exatamente um clássico, mas para nós brasileiros tornou-se bem conhecida a partir da década de 80.
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Florbela era portuguesa, nascida em oito de dezembro de 1894, filha de pai não declarado. Seu nome de batismo, Flor Bela Lobo, o sobrenome Espanca viria mais tarde por conta de seu padrasto. Escrevia poemas desde os sete anos. Seus sonetos os assinava “Bela”. Todos sempre profundos, autocríticos e às vezes autobiográficos, como estes:

VAIDADE
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...E não sou nada!...

Este aqui é um pouco profético:

DIZERES ÍNTIMOS


É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!

E logo vou olhar (com que ansiedade!...)
As minhas mãos esguias, languescentes,
Mãos de brancos dedos, uns bebés doentes
Que hão-de morrer em plena mocidade!

E ser-se novo é ter-se o Paraíso
É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,
Aonde tudo é luz e graça e riso!

E os meus vinte e três anos...(Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir "Que linda a vida!..."
Responde a minha Dor: "Que linda a cova!"

Sua vida foi repleta de relações tempestuosas; Florbela sofria de problemas mentais. Após casamentos conturbados, separações e abortos involuntários apresenta sinais sérios de neurose e, aos 36 anos, no dia de seu aniversário (oito de dezembro de 1930), suicida-se.

De volta a minha busca por poesia, enquanto deleitava-me com alguns de seus poemas, um deles em particular chamou-me a atenção. Eu nunca tinha lido muito sobre a poetisa portuguesa; sabia de sua existência, de sua bela poesia e coisa e tal, mas não conhecia a fundo sua produção literária. Porém, aqueles versos em particular me pareciam familiares (Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida / Meus olhos andam cegos de te ver!). Era uma poesia marcadamente apaixonada.

Você já deve ter ouvido estes versos, senão, veja-os:

FANATISMO

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!"


Captou?

Pois é, intrigado com a familiaridade com as palavras do soneto, enveredei por uma pesquisa online que logo me trouxe a resposta. Será que descobri a pólvora? Acho que muita gente já sabia disso! A verdade é que a gente houve as músicas, mas, na maioria das vezes não se liga muito na letra, quer dizer, não se preocupa em saber quem escreveu a letra. Apenas lembra do cantor. Não é isso?

Está explicado. Estes versos eu os curti muito na voz de Fagner, meu conterrâneo. A música, que fez o maior sucesso, foi lançada pelo cantor cearense em 1981, no álbum “Traduzir-se”. A magnífica letra são os versos do soneto Fanatismo, de Florbela Espanca, escritos em 1923 e divulgados em seu “Livro de Sóror e Saudade”, e que tornaram a escritora portuguesa bastante conhecida no Brasil a partir daí.

É a poesia viva atravessando o tempo e as diferentes mídias para prestar-se a novas leituras.
Uma ótima semana a todos!

Confira: Florbela na voz de Fagner
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Crédito fotos: Florbela.
Crédito fotos:Fagner.