quarta-feira, maio 20

O preço do progresso

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A agonia de um gigante
Ivan Rodrigues

Passar pela Amazônia e sair de lá sem alguma estória para contar é algo quase impossível. A Região é um bioma de diversidade indescritível, imensurável, e talvez por isso ainda pouco conhecida. Cenários e estórias inimagináveis se descortinam diante de quem pisa aquele chão pela primeira vez.
Muitas imagens ficam impregnadas na memória do visitante urbano. A biodiversidade, a fartura do pescado, a embarcação como principal modal de transporte, os mitos, a culinária, o desmatamento, enfim, a Amazônia é uma região onde tudo é superlativo, inclusive os esforços para se levar o “progresso” até lá, ou, para impedir que ele chegue.
As obras de implantação do aeroporto mais novo da Amazônia, de classe internacional, estavam em andamento. Sua construção, como toda grande obra no seio da Amazônia, seria desafiadora. O acesso ao local, a cerca de 25 km da capital, se fazia pela BR-364. A instalação do canteiro de obras, a demarcação do eixo da pista, a abertura das clareiras, a terraplenagem, tudo era sacrificado.

Implantar mais um aeroporto na maior floresta tropical do mundo não seria fácil. Imaginem construir uma pista de pouso de concreto asfáltico, com mais de dois mil metros de comprimento, por 45 metros de largura, com o agravante de que na região, cujo solo é formado de sedimentos não consolidados, há escassez de pedra britada, indispensável a qualquer construção. Para se produzir concreto ali muitas vezes é necessário se transportar a brita por até três mil quilômetros. Cada dia era um desafio.
Abertas as clareiras e a faixa de pista, observou-se que os operadores de máquinas davam voltas em torno de um determinado ponto, como se evitassem um obstáculo. Logo ficou claro. “No meio do caminho havia uma pedra”. Exatamente no alinhamento do eixo da pista, onde seria a cabeceira 24, havia uma castanheira gigantesca, da espécie Castanheira Gigante (Bertholletia excelsa), que resistia incólume. Que árvore!
Avaliada pelos topógrafos, tinha mais de cinquênta metros de altura.
Seu tronco media na base, quase três metros de diâmetro. Os mateiros davam-lhe mais de quinhentos anos de vida.
Diariamente os operários resmungavam quanto a ter que derrubar aquele gigante. Por outro lado, o projeto de um aeroporto é algo tão grandioso que não se pode nem pensar em mudanças por causa de uma “arvorezinha”. Porém, sua imponência exercia um enorme fascínio sobre todos. Operadores e engenheiros pareciam concordar, em deixá-la ali até que tudo estivesse quase pronto. Assim fizeram. A árvore permaneceu lá, altiva, durante toda a obra.
A obra durou vários anos. A castanheira testemunhara o esforço de cada profissional para trazer, com urgência, nas asas do mais-pesado-que-o-ar, o progresso àquela região tão carente de transportes. O aeroporto existente na cidade enfrentava problemas judiciais e seria desativado. Por conta de tão nobre propósito talvez os perdoasse por tirarem-lhe a vida.
Linheira e perfeitamente vertical, a castanheira parecia um obelisco plantado ali como marco da construção faraônica que era tocada a braços fortes. Na verdade aquele “monumento”, símbolo de resistência da floresta e da generosidade da natureza, parecia estar lá para cobrar que fosse justo o preço de seu sacrifício.
Nos finais de tarde, ao se recolherem aos alojamentos, os operários fitavam-na de longe. Era como uma guardiã do merecido descanso de todos. Velava-lhes o sono. Era a última a ver o por do sol e a primeira a despertar com ele. Também pudera, não havia nada mais alto num raio de muitos quilômetros.
A obra avançava. A preparação do subleito, a compactação da base, cada etapa, a seu tempo, parecia prenunciar o fim de uma existência vegetal que se especulava ser quincentenária. O terminal de passageiros estava em fase avançada e a primeira camada de concretagem da pista já concluída.
Até ali, a castanheira havia trocado a folhagem várias vezes. A natureza tinha sido generosa com ela nestas últimas primaveras, sua copa apresentara-se sempre exuberante. Abrigara e alimentara ainda muitos pássaros e primatas.

Porém, esta seria sua última folhagem. Já não tinha o mesmo viço. Parecia perceber a proximidade do fim.
As moto-niveladoras já descansavam nas oficinas. A sinalização de pista estava em andamento, a cabeceira oposta pavimentada e sinalizada. Hora de eliminar os últimos obstáculos da cabeceira 24.

A castanheira acompanhou toda a obra, dia após dia. Só lhe faltavam crachá e cartão de ponto. Agora seu aspecto era triste, cabisbaixo. Ou será que nós é que espelhávamos nela nossa tristeza? Cairia em breve, mas não seria uma simples “pedrada na cabeça” que a faria tombar.
Chegado o fatídico dia - Sítio Aeroportuário pronto - a matriarca da floresta finalmente teria que sair dali. Mas, naquela manhã chovia muito, os céus pareciam chorar sua perda, as máquinas não poderiam trabalhar naquelas condições. O corte fora então remarcado para o dia seguinte. Viveria mais um dia!

Seu fim teria que ser um dia de honrarias.
O sol viria contemplá-la, os pássaros, que por tantos anos fizeram abrigo entre suas folhagens, não deixariam de vir homenageá-la. Não poderia ir-se num dia chuvoso e triste.
Na hora do infortúnio, o sol foi o primeiro a chegar. Brilhante e dourado como nunca se havia visto. Não abandonaria nesta hora a companheira que por centenas de anos o esperou nascer e nos fins de tarde, por sobre o canopy da floresta, o observou deitar-se.
Ao primeiro ronco das máquinas, como numa coreografia ensaiada com zelo, uma revoada de pássaros parte das entranhas de sua copa fazendo algazarra. Araras, papagaios e muitos outros pássaros menores. O gavião-real, a ave de rapina mais forte do mundo, que por vezes fizera pousada ali, enflechava o voo em formação. Os mangangás, que por anos a fio fizeram a polinização da Bertholletia excelsa, vieram prestar-lhe honras. Primatas e roedores observavam tudo de longe escanchados em outras árvores. A castanheira lançava seu último olhar sobranceiro, não veria o por do sol naquele dia. Agradecida pela festa, agora veria tudo por outro ângulo.
Não se pode conter o progresso, mesmo que se resista por quinhentos anos. Um dia ele chega implacável.
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O corte foi uma operação de guerra. A castanheira desapareceu dando lugar a muitos metros cúbicos de toras, como ocorrera com centenas de outras da sua espécie. Ficou um tremendo vazio. Se servir de consolo, ela ainda terá uma sobrevida, em alguma palafita de ribeirinhos ou flutuando no casco de alguma embarcação pelos rios da região. Afinal de contas, uma existência de meio milênio não acaba assim.
Hoje, quem pousa no Aeroporto Internacional de Rio Branco, inaugurado em 1999, não imagina que por centenas de anos estiveram assentadas ali as raízes da Bertholletia excelsa. No futuro, será que ainda poderemos vislumbrar a gigantesca floresta que ali esteve assentada por milhões de anos?