Anônimo
Amanheceu.
Abro os olhos e procuro o celular. Na tentativa de alcançá-lo esbarro na taça de vinho que dividimos na noite anterior.Tem o batom dela na borda. Pego o telefone, busco seu nome na agenda e disco: 8867... não atende. Confirmo o numero, ligo outra vez; deixo chamar até cair na caixa postal. Talvez ela não queira atender; prefiro acreditar que ainda esteja dormindo. É muito cedo.
Poderíamos ter passado a noite juntos no hotel, mas Amanda preferiu ir embora naquela noite mesmo. Sem despedidas – disse ela. Seria mais fácil para nós dois. As despedidas nem sempre são bem resolvidas, preferiu evitá-las.
O perfume de Amanda está no telefone, nos lençóis, em mim, inunda o quarto. É como se ainda estivesse por ali. Entro no chuveiro ainda com o cheiro dela em meu corpo. Embora não deseje, preciso livrar-me dele.
Já no aeroporto volto a ligar; de novo caixa postal. No coffee shop, enquanto tomo um cafezinho vou me desfazendo dos indícios da presença dela. Recadinhos da portaria, cartões, mimos. Nesse meio tempo passa um flashback daqueles últimos dias. Levará algum tempo para esquecê-los. Não é nenhum longa-metragem, mas as cenas são fortes. Prossigo apagando minhas pegadas.
“Vôo 3255, embarque imediato, portão D”.
Meu vôo, tenho que ir. Não consegui falar com ela. A caminho do portão de embarque tento novamente. Não atende. Gostaria de dar-lhe mais um beijinho, mesmo que por telefone. O caminho parece longo até a aeronave; recuaria se pudesse. Talvez nunca mais a veja.
“...a partir deste momento desliguem os aparelhos celulares”.
Antes de desligar o aparelho, enquanto caminho para a aeronave, deleto Amanda “definitivamente”. Nome, número, dezenas de mensagens, fotos. Apago tudo.
Sinto-me como se transitasse entre dois mundos incompatíveis. É preciso passar por uma câmara de descontaminação. Ali desfaço-me dos resíduos, dispo-me das roupas de proteção, retiro as máscaras. Mais alguns minutos e estou no ar. É como se todas as conexões se desfizessem ali, na decolagem.
Durmo por duas horas. Os solavancos de uma área de turbulência interrompem meu sono reparador. Logo em seguida a chefe de cabine anuncia: “aeronave em procedimento de descida, afivelem os cintos e retornem o encosto de suas poltronas à posição vertical”.
...
É o fim da catarse. O sono foi a última etapa. A partir dali invisto-me dos acessórios de um outro mundo. Outros perfumes, outros sorrisos, novas expectativas.
“Em Porto Alegre tempo bom, temperatura 25 graus. Tenham um bom dia!”
No desembarque, “nova” recepção. A sensação de estar outra vez em um porto seguro, mesmo que seja outro, é confortável. Coração outra vez acelera. Mas é como acordar de um sonho proibido, inconfessável.
Talvez nunca volte aquele lugar, assim como não voltei a tantos outros. Talvez nunca volte a ver Amanda.
Entre embarques e desembarques, outras Amandas, no celular, na memória.
(...)
Outra vez na sala de embarque... “Voo 3054, para Congonhas, última chamada”...
São Paulo, 18 de julho 2007.
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Avião com 176 pessoas a bordo bate e pega fogo em Congonhas
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Um Airbus A320 com 176 pessoas a bordo que chegava de Porto Alegre se chocou no início da noite desta terça-feira (17 de julho 2007) com um terminal de cargas do aeroporto de Congonhas, São Paulo e pegou fogo. O acidente é o maior da aviação no país, sem sobreviventes.
Um Airbus A320 com 176 pessoas a bordo que chegava de Porto Alegre se chocou no início da noite desta terça-feira (17 de julho 2007) com um terminal de cargas do aeroporto de Congonhas, São Paulo e pegou fogo. O acidente é o maior da aviação no país, sem sobreviventes.
...............................................................................Foto: agenciabrasil
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Quantas estórias acabaram ali!
Amanda deve estar aliviada; meu nome não consta da lista de passageiros. Voaria para o Rio naquela tarde.
Quantas estórias acabaram ali!
Amanda deve estar aliviada; meu nome não consta da lista de passageiros. Voaria para o Rio naquela tarde.