terça-feira, março 31

Ao pé da letra

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Estava relendo Fernando Sabino ( O Encontro das Águas).

Lembrei de um episódio ocorrido algum tempo atrás, meu filho do meio , era uma pimenta, o moleque dava um trabalho que só vendo, certo dia o pai já em desespero olhou para ele e disse:

Felipe se tu não se aquietar, vou dar um cascudo na tua cabeça que vai rachar teus pés. (antes que vocês fiquem indignados, não tínhamos o costume de bater em nossos filhos), grande foi a surpresa dele quando chamei a sua atenção para o que o Felipe estava fazendo , agora bem caladinho...ele dava um cascudo na própria cabeça e em seguida olhava os pés para ver se tinham rachado.

Nós ficamos morrendo de dó dele e a partir desse dia, tentamos não dizer coisas desse tipo, pois as crianças interpretam as palavras ao pé da letra.

Quem não fez alguma interpretação desse tipo quando criança?

Leiam o texto

O Homem é um animal racional, embora não pareça. Não há criança que, na escola, não tenha achado graça ao aprender isso, divertindo-se com os colegas: seu pai é um animal, dizem uns para os outros.

Mas a criança é o pai do homem, se me permitem este lugar comum que Wordsworth inventou. Antes de se saber animal e filho de animal, já sabe usar a razão que Deus lhe deu, segundo a qual as palavras tem um significado concreto e definido, que pode ser colhido nos dicionários, servindo para designar exatamente aquilo para o qual foram criados. Em consequencia, os mistérios da linguagem figurada escapam de muito à tão apregoada imaginação infantil.

Para as crianças, nada existe senão ao pé da letra, e não duvido que, diante dessa expressão, pensassem logo numa letra com pés, dedos , unhas e sapatos. Ir num pé e voltar noutro, por exemplo, para o menino que eu fui, era uma façanha tão difícil como sair da rua pulando numa perna só, depressa para atender a urgencia contida na ordem de minha mãe.

Assim também, meu pai mandar que o empregado desse um pulo na cidade me parecia uma ordem extravagante, como ordenar que o pobre homem fosse até o centro da cidade, juntasse as pernas, desse um pulo no ar diante dos transeuntes e voltasse para casa. Nunca me conformei com a idéia de virar um palito se comesse pouco ao jantar, de virar uma bola se comesse muito e, em ambas as hipóteses, ficar de cara amarrada porque não queria obedecer. Amarrar a cara evidentemente só seria possível com o auxilio de cordas, e se nela houvesse um só pingo de vergonha, ela me escorreria pelo rosto como uma lágrima até pingar no chão.

Mas a fé removia montanhas, o que bastava para fazer desaparecer o morro atrás do qual o sol se escondia. Um dia ouvi uma visita dizer que tinha feito das tripas coração, o que constituiu um sério abalo para as minhas ainda confusas noções de anatomia. Ficar com o coração na mão era coisa que só muito mais tarde vim a entender, e reconheço que, desde então, isso passou a me acontecer com alguma frequencia.

Começava a penetrar os mistérios da linguagem figurada e ia ingressando, submisso, no mundo convencional que me deixavam como herança. Idéias que só se impõe pelo fato de ser repetidas; hábitos que se formam pelo fato de ser impostos; palavras cuja significação original há muito se perdeu e que são usadas como rebanhos pacíficos. Gestos de valor convencionado como o das moedas, para o comércio da convivencia.

Um dia descobriria com espanto uma simples verdade, como o céu é azul, o oceano é imenso, a noite é bela. E o céu passava a ser azul só para mim, o oceano era imenso porque eu o queria assim, a noite era mais bela que o dia porque era só minha, de mais ninguém. As idéias herdadas iam sendo repreendidas, iam sendo desenterradas do lugar comum como uma recriação. Era o que eu precisava para me tornar escritor.


Escrever bem não é repetir o que já foi bem escrito: é revalorizar os meios de expressão, juntar ou separar palavras para faze-las reagir, servir-se do que já foi dito para dizer pela primeira vez. Como fez Gide, ao confessar: “ Os extremos me tocam”. Como fez Machado de Assis, ao dizer que “o major chovia a cantaros”. Como fez o Mário de Andrade, exclamando: “ Amar sem ser amado, ora pinhões!” É preciso reabilitar para a literatura as ideias cuja expressão a frase feita consumiu. Surpreender o lugar comum como a um inimigo e libertar a verdade que possa encerrar. Usar esta verdade na descoberta de outras que um dia venham a ser lugar comum.


Desejo a Todos uma semana produtiva


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